terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Uma receita diferente

As palavras faltavam completamente pra descrever como apreciava a compania da Amigairmãmaisvelha. Achava a irmã divertida e séria ao mesmo tempo e isso acabava por ser muito engraçado no fim das contas. Ela ficava tentando segurar o riso diante do empenho da Amigairmãmaisvelha em acompanhar a velocidade do sotaque dela, que formava ininteligíveis regionalismos às vezes e a Amigairmãmaisvelha mesmo com o ouvido afiado como faca de dois gumes pedia para repetir. A Amigairmãmaisvelha chegou na vida dela primeiro e foi a Amigairmãmaisvelha que trouxe para perto dela a Amigamãedetodas e a Amigairmãsensata.

Logo depois de se instalar no coração remendado que ela tinha naqueles tempos a Amigairmãmaisvelha se ausentou e saiu de órbita por muito tempo deixando aquele lugar aos cuidados da Amigamãedetodas que foi tratando de abrir as janelas para o sol entrar, tirar a poeira de cima do piano que tinha no coração dela e preparar o instrumento de cordas que tinha na garganta dela para que voltasse a funcionar perfeitamente. E ela, apesar de sentir muita falta da Amigairmãmaisvelha aproveitou para grudar na Amigamãedetodas e aprender o máximo que podia com aquela sábia pessoinha que deixara o sol entrar na casa do coração.

107669572, Alberto Guglielmi /Taxi

Depois a Amigairmãmaisvelha voltou de vez e as outras; ela, Amigairmãsensata e Amigamãedetodas, já tinham criado vínculo poderoso e aprendido a rir juntas e provar e ver que o Grande Mestre é bom. A Amigairmãmaisvelha então sentou-se no seu lugar novamente e desde aqueles tempos que a Amigairmãmaisvelha voltou elas só saiam em grupo, e em grupo todo mundo é muito diferente.

Para ela, que amava muito a todas, aquelas reuniões com as amigas não tinham nem como serem mensuradas de tanto que valia a pena. Ela aprendia muito com as amigas que eram extremamente usadas pelo Grande Mestre e aprendeu também, desde muito cedo, que as amigas sabiam como rir de verdade e riam com gosto, o que ela mesma adorava. Assim apreciava cada segundinho daqueles encontros como se fossem os últimos para sempre, mas com a graça que o bondoso Grande Mestre dava eles sempre se repetiam para alegria e edificação dela.

Naquela tarde quente de verão, porém, ela e a Amigairmãmaisvelha estavam de frente uma pra outra e conversavam só entre elas. Como toda boa irmã mais nova ela já tinha aprendido exatamente o que dizer pra convencer a Amigairmãmaisvelha a fazer o que ela queria e se aproveitava assim ao máximo daquela compania.

200451532-001, Thomas Northcut /Digital Vision

Conversa de irmão era muito diferente de conversa de mãe e ela aprendeu isso muito cedo quando, vez por outra, saía do quarto dela, da cama dela e ia pra cama do irmão no quarto ao lado e ficavam ali conversando por muito e muito tempo até quase amanhecer o dia, mesmo que no outro dia tivessem aula pela manhã. Ela se riu por dentro enquanto lembrava com carinho do rosto do irmão que dizia: - Mas não conta pra mamãe! e ela respondia: - Tá, mas você também tem que prometer que não vai contar! E assim firmavam um acordo que parecia ser mais um tratado entre nações, de tanta importância que tinha para ambos aquela palavrinha empenhada.

E foi assim que se sentiu naquela tarde de verão barulhenta manuseando com cuidado os benditos chopsticks no shopping e se entupindo de comida japonesa, que era a melhor no mundo pra ela, como se tivesse no quarto da irmã. A diferença ali é que naquela mesa ela estava aprendendo a ser irmã mais nova, o que não era muito comum pra ela, que aprendeu a vida toda com o irmão mais novo que tinha a ser irmã mais velha e orientar ao invés de ser orientada.

Enquanto a Amigamãedetodas somente avisava uma única vez com todo carinho e amor do mundo o que quer que tivesse para falar e depois entregava nas mãos do Grande Mestre para que Ele mesmo cuidasse, a Amigairmãmaisvelha, sabendo que o cérebro pensante era turrão era firme ao falar e incisiva no que precisava ser dito argumentando com coisas que o cérebro pudesse assimilar melhor. Ela olhava para os olhinhos grandes da Amigairmãmaisvelha e tentava acompanhar o raciocínio e sincronizar com a voz que saía da boca da Amigairmãmaisvelha mostrando para o cérebro aquelas coisas a fim de que ele cedesse, mas não parecia estar surtindo algum efeito.

Toda essa conversa entre elas começou porque o Grande Mestre colocou nas mãos da Amigairmãmaisvelha um grande saco de batatas e pediu que fizesse um purê homogêneo onde não se pudesse mais distinguir uma batata da outra e há tempos a Amigairmãmaisvelha vinha tentando receitas diferentes, ingredientes diferentes e ainda não tinha dado certo. No último jantar que o Grande Mestre deu em que elas estavam juntas foi possível ver claramente o saco da batatas dado à Amigairmãmaisvelha pelo Grande Mestre no canto da sala de celebração e aquilo a intrigou a ponto de atrair a atenção dela e ela ficou mesmo observando aquele saco de batatas por muito tempo.

Ali ela viu algumas batatas muito bonitas, outras nem tanto, algumas que precisavam de uma limpadinha, outras que precisavam que fossem arrancados os brotos que começavam a sair e ainda outras que ela não sabia definir. O fato era que, aos olhos dela, um saco de batatas, apesar de ter batatas boas não era nada agradável de se ver. Mesmo quando ia à feira com o avô ela não gostava nem um pouco de ver aquele monte de batatas que nem cor definida tinham se amontoando e se acotovelando juntas somente por aquele saco vermelho típico das feiras.

103340494, Chris Ted /Photodisc

Pensou tanto naquele saco eclético de batatas que teve a ideia de uma receita nova e ficou muito feliz em poder ajudar a Amigairmãmaisvelha a finalmente fazer um purê de sucesso. É certo que ela não sabia se daria certo ou não, mas mesmo assim queria mostrar para Amigairmãmaisvelha para que ela avaliasse e tentasse fazer.

Depois de explicar cuidadosamente cada passo da receita para a Amigairmãmaisvelha estavam ambas com àgua na boca querendo tentar executar. Parecia de fato uma ideia muito boa! Tudo bem que o primeiro passo não fosse o mais agradável porque nem toda batata gostava de ser descascada, mas pelo resultado final estimado valeria a pena.

Foi nessa hora que a Amigairmãmaisvelha distribuiu as tarefas entre as duas, ela disse que não sabia cozinhar, e a partir daí a prosa tomou outro rumo. Entrou em ação aquele lado que corrige que todo irmão mais velho teima em ter incentivando a gente e esse ímpeto saiu das entranhas, foi abrindo espaço na traquéia e a boca da Amigairmãmaisvelha não conseguiu segurar a frase que saiu extremamente espontânea: Como você me diz que não sabe cozinhar se eu mesma já comi da sua comida muitas vezes? A Amigamãedetodas sabe que você diz que não sabe cozinhar?? A Amigamãedetodas já comeu da sua comida também, e ela não falaria que você não sabe cozinhar.

E ela aprendeu mais rápido ainda uma façanha que irmãs mais novas sabiam muito bem, que era a justificativa e disse: - Mas é muito diferente uma coisa outra. Eu fiz aquela comida com a orientação do Grande Mestre, por isso que saiu boa, além do mais, era só pra gente mesmo, não tinha mais ninguém para comer. Sábia que era a Amigairmãmaisvelha rapidamente rebateu com toda graça no falar que a árvore, seja ela qual fosse produzia frutos espontaneamente e a árvore mesmo não comia nenhum, pois manga não era comida de mangueira.

Depois que a Amigairmãmaisvelha disse aquelas coisas e pôs-se a explicar sobre árvores que não faziam o que queriam e que não poderiam comer os seus próprios frutos, que alimentavam outras pessoas e não a elas mesmas ela logo imaginou cenas um tanto quanto bizarras de árvores que se espreguiçavam em seus galhos que ganhavam vida e começavam a arrancar lentamente cada um dos seus frutinhos e levar à boca, uma cavidade meio que cavada no tronco grosso.

90258046, Dinodia Photos /Botanica

Tentou espantar esse pensamento esquisito enquanto a Amigairmãmaisvelha falava sobre os talentos que não podiam ser enterrados, pois não era certo, não era justo e que ela estava tentando enterrar os talentos que o Grande Mestre tinha colocado nas mãos dela. Isso - dizia a Amigairmãmaisvelha - não é sinal de fidelidade. E nem de inteligência mocinha!!

Ela sabia que com a Amigairmãmaisvelha não podia argumentar, por isso ficou apenas escutando e fazendo perguntas sem rebater nenhuma palavra. Deixou que a Amigairmãmaisvelha plantasse aquela sementinha no coração dela, que já estava se tornando terra boa, e deixou também que essa sementinha fosse regada e cuidada pelo Grande Mestre, pois ela sabia que a Amigairmãmaisvelha falava de coisas que o Mestre mandara, mas que não queria enterrar nada e sim plantar mesmo que para ela fosse tudo ainda muito complexo de se pensar.

97971112, Adam Gault /OJO Images

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