sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Flashback

Como tinha comido mal naquele dia! De bom mesmo só o café da manhã que o Grande Mestre tinha preparado pra ela. Passou o dia todo à base de sanduíches que além de não alimentarem quase nada, a não ser na hora, engordavam e saíam muito rápido do organismo dando lugar novamente à fome. Enquanto pensava nisso e descia as escadas encontrou o rosto da mãe que estava viajando há alguns dias e sentiu o quanto estava com saudades.

Abraçando a mãe sentou-se próxima aos pais e ainda comendo beijou a Amigamãedetodas, que muito encalorada do verão dos trópicos tupiniquins, se refestelava confortavelmente na cadeira. Era apenas uma reunião informativa o motivo de estarem ali, mas estava feliz por estar ali simplesmente reunida com pessoas que amava. Pelo fato de terem chegado muito cedo não eram todos os convocados que haviam chegado ainda e puderam conversar por bastante tempo.

Enquanto ainda estava comendo chegou a Amigairmãmaisvelha com toda alegria quase que invisível acumulada dentro dela e deu um beijo em cada um que ali estava. Era muito engraçado e divertido comer perto da Amigairmãmaisvelha porque ela sabia muito a respeito de todas as comidas do mundo, desde a mais gostosa até as que não são recomendáveis, e sabia muito bem admirar a arte da boa cozinha. Depois da Amigairmãmaisvelha um simples chopstick nunca mais foi o mesmo.

106163766, Mimi  Haddon /Lifesize

Tratou logo de terminar de comer para poder conversar com todo mundo antes que entrassem para a reunião e conversou um pouco com cada um desde a Amigairmãsensata até pessoas que não estava muito acostumada a encontrar.

Ela achava engraçado por demais a forma como a Amigamãedetodas a olhava. Sabia naquele olhar carinhoso que a Amigamãedetodas sentia orgulho dela, como se fosse mãe de verdade, que cuida, que pastoreia, que divide a bagagem ao longo do caminho, apoia e incentiva. Ela sabia também que a Amigamãedetodas era muito grata ao Grande Mestre pelo jardim fechado que começou a fazer dentro dela. Foi a Amigamãedetodas que cuidou para que, quando o Grande Mestre começasse a revolver a terra daquele jardim ela não repelisse o cuidado que, embora não fosse bem prazeiroso era necessário para que as sementinhas que Ele espalharia fossem absorvidas com sucesso. E foi também a Amigamãedetodas que intermediou a festa de gratidão que haviam participado ontem mesmo no tal do "Recôndito do Tabernáculo". E ela olhava para a Amigamãedetodas e ao mesmo tempo sentia gratidão e carinho por aqueles olhinhos que a olhavam de volta.

De repente a Amigairmãmaisvelha se coloca de pé por um salto e diz que começaria agora mesmo a reunião. O Grande Mestre havia pegado uma dose de autoridade e colocado na Amigairmãmaisvelha toda vez que precisava que ela, Amigairmãmaisvelha, estivesse de pé diante do povo. Era fantástico como nem parecia a mesma pessoa. Falava ainda com doçura e mansidão, mas com firmeza de posição decidida, com firmeza de voz emprestada do Mestre. Não havia alternativa, todos se silenciaram e pararam para ouvir.

A Amigairmãmaisvelha pediu a todos que pegassem a carta de amor que o Grande Mestre havia escrito a eles para que lessem e pudessem comprovar, ou simplesmente lembrar que o Grande Mestre não só os amava, mas cuidava muito bem deles. Firmou-se então o acordo que cada um, em sequência leria um parágrafo e assim foi. Mas não bastava ler, era preciso que se explicasse o que havia acabado de ler. Para a Amigairmãmaisvelha, entendedora que era de comida não bastava simplesmente comer comida boa, tinha que degustar.

Sem saber ao certo porquê e de onde surgiu isso, a Amigairmãmaisvelha achava engraçado por demais ter essa nomenclatura como só dela, mas o que não sabia é que havia ganhado esse título ao sair da estação do metrô e oferecer a mão para que atravessassem a rua, como se ela fosse criança. Não como incapaz, mas como instinto protetor que tinha com ela sempre. Não como mãe, mas como simplesmente Amigairmãmaisvelha, como o próprio nome diz. E continuava demonstrando isso a cada dia desde então, mesmo sem perceber. E acabara de fazer novamente deixando que ela simplesmente lesse ao invés de explicar. Como envergonhada que sabia que ela era, a Amigairmãmaisvelha tomou a explicação das mãos dela e simplesmente a conduziu e concluiu entregando-a prontinha nas mãos do próximo que leria e explicaria. Ao perceber isso com certo atraso ela colocou a mão na boca tentando esconder o riso e entendeu que o nome disso era cuidado.

As palavras que tinha naquela carta eram muito fortes. Em algumas delas podia-se sentir o poder do que era proclamado e ela até achava que alguns trechos eram em coraçõnês porque até viu alguns coraçõezinhos sorrirem quando se dizia algumas coisinhas. Prestou bastante atenção em todas as palavras daquela carta e quando terminaram aquele pedacinho de livro lido sentiu que estava alimentada com algo de bom novamente. O Grande Mestre, surpreendente como sempre era, preparava alguns lanchinhos aqui e ali para que não morressem de fome.

De outro salto a Amigairmãmaisvelha se dirigiu ao aparelho de som para que pudessem cantar e ela, operadora oficial do aparelho, foi atrás para poder manusear o pequeno cantante. Quando percebeu a presença dela ali perto do som a Amigairmãmaisvelha apontou para um dos microfones e disse: seu lugar não é mais aqui, some pra lá! - argumento faltou, o juízo ainda não havia se despedido e segurou todas as palavras que poderiam sair e ficou sem palavras. Abaixou o olhar em direção aos pés e os pés imediatamente entenderam que era pra se encaminhar sem demora para o microfone apontado.

Foi a conta de a Amigairmãmaisvelha soltar a música e ela se apoiar nas notas musicais que saiam da boca da Amigairmãsensata pra se sentir em casa e cantar como se só estivessem as duas ali. E aproveitou mesmo cada notinha de cada música até acabar.
107428973, Paul Bradbury /OJO Images

Foi só nessa hora que percebeu que na verdade, o fato de ela estar ali, de estar cantando com as amigas, família que escolhera, nada mais era do que um lembrete do Grande Mestre. Ele queria que ela trouxesse à memória o que podia dar esperança. E nada mais poderia dar esperança do que a lembrança da voz da Amigairmãmaisvelha, em quem aprendera a confiar desde muito cedo, ordenando com voz firme que abrisse a boca e cantasse tempos atrás. E não só cantasse mas declarasse, que era livre.

E ela, irmã mais nova que aprendera a ser, ouvindo a voz potente da Amigairmãmaisvelha ordenando com o olhar ficava constrangida e, sem coragem de negar esse pedido ordenado cantava com vergonha e sem saber direito a letra. Enquanto isso, enquanto declarava que era livre mesmo ainda sem o ser de verdade, o Grande Mestre ouvia o que saía da boca dela e passou a prestar atenção. Na primeira vez que ouviu, porém, Ele parou e só escutou. E ela, que pensava estar cantando pra Amigairmãmaisvelha, cantava cada vez mais forte.

Foi então, que a partir da segunda vez que cantava, o coração se deixou levar pela melodia e entrou no ritmo, começou a cantar junto com a boca e dessa vez o Grande Mestre ouviu e começou a acreditar no que saía da boca dela e tomou aquilo que era cantado realmente como verdade. Sem resistir àquele coração quebrantado o Grande Mestre levantou-se do seu trono então e a pegou pela mão para iniciarem uma looooonga caminhada. E ela, que não sabia o que fazer e nem entendia direito o que estava acontecendo naquele lugar buscava aprovação de alguma forma no olhar da Amigairmãmaisvelha, que só sabia rir dela e responder involuntariamente com o mesmo olhar que ela buscava: Se solta e vai... Pode ir!! Confia e deixa Ele te levar.



Com o consentimento e apoio da Amigairmãmaisvelha então aceitou a mão que o Grande Mestre estendeu a ela e começou a andar bem devarinho, com receio ainda, mas já feliz por ter aceitado a mão forte Dele pra caminhar. Foi passando por cada passo que haviam dado juntos desde então e visto que o Grande Mestre, apesar de ter pressa, havia se mostrado aos poucos pra que ela não se assustasse com tamanho poder e saísse correndo soltando a mão Dele e entendeu que isso também era cuidado. Viu que naquele curto caminho Ele já havia trocado as vestes dela que eram de trapos estrupiados e colocado vestes que Ele mesmo escolhera, pois eram de louvor. Viu também que ela tinha frequentado muitos banquetes, pois o Grande Mestre era especialista em festas para os filhos Dele e que nesse caminho não havia lhe faltado absolutamente nada, mas muito pelo contrário, tinha o acréscimo da Presença do Grande Mestre, que não era possível de descrever devido à importância, majestade e magnitude que possuía por si só.



Foi tudo isso ao mesmo tempo agora que Ele vinha trazendo à memória dela como que em flashback enquanto ela abria a boca e cantava que era livre como a Amigairmãmaisvelha havia ordenado em tempos remotos. Mas agora, agora era diferente. Ela mesma sabia, dessa vez não só no coração, que tinha um ouvido melhor pra ouvir o Mestre, mas também na cabeça, que apesar de ainda ter muito trabalho a ser feito aquela canção já era verdade pra ela como primeiro acreditou o Grande Mestre quando se levantou e pegou na mão dela convidando-a a andar do lado Dele até a consumação do século.

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