sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

E assim ela viu mais um ano passar, escorrer pelos seus dedos sem que pudesse segurá-lo. "Ainda bem", pensou, afinal esse ano foi um tanto quanto torto.

Pensou ver deformada sua imagem através dos olhos de outrem, mas agora... agora sim, a via mais nítida. Podia ver novamente a pessoa que realmente era. Ficava mais definido, aos poucos, seu reflexo.

A única coisa que nunca mudava. Aliás, sabia que nunca ia mudar era a falta que sentia dele.

Também pudera!! Ele estava presente em todas as fases da vida dela. Desde o parto da mãe até quando as asas dela começaram a despontar. Ele fora seu herói, seu único amigo e confidente por muito e muito tempo. Mesmo sendo sempre do jeito dele, ela nunca ligava, até gostava. Ele era divertido, a fazia rir e deixava que cuidasse dele de uma forma que ninguém tinha acesso.

Hoje na loja de perfumes aspirou fundo um cheiro que o trouxe na mesma hora pra perto dela. E mesmo sabendo que nunca mais ouviria a voz firme e rouca dele falando: "oh minha filha! pega pra mim esse palito em cima da mesa" sabia que sentia muita falta e muito orgulho dele.

Sabia também que tinha nela muito mais dele do que ela podia prever, ou mesmo saber. E só se dava conta disso quando simplesmente vivia. Simplesmente deixava-se ser quem ela realmente era. E se sentia feliz com isso, sentia que, de certa forma, ele continuava vivo dentro dela. Com cada voz, cada gesto, cada lição, cada suspiro e cada noite bem dormida.

O fato é que a gotinha dele que tinha dentro dela era pouco, e o que ela mais queria era tirá-lo de dentro dos seus pensamentos e realmente abraçá-lo bem forte.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010


Há algum tempo vinha se lamentando pela constante crise de incompetência pela qual vivia rodeada. Como poderia ser isso possível? Ou será que ela mesma havia se metido nela e por auto-incompetência não conseguia enxergar?

De todas as entrevistas que havia feito aprovou alguns e destes poucos lhe sobrara apenas uma. Surgiu então a dúvida: essa uma vale realmente a pena? E já nocauteia esse pensamento com outro mais bonitinho: claro que vale... Jesus não desistiu assim tão fácil. Será um desafio! Decidiu!

Ao chegar em casa, com todas aquelas incompetências lhe escorrendo ralo abaixo levadas pela força do chuveiro se sentiu aliviada por não existir processo seletivo para se escolher amizades. Nunca se sabe como elas começam, mas podem ter uma força de gigante. E se sentiu mais aliviada ainda por causa disso.

Começou a pensar nas antigas amigas que deixara para trás, bem atrás dos morros de Minas. Passeou os pensamentos pelas amizades que conquistara no polo dos bandeirantes paulistas ao longo do ano que ia morrendo e ainda nas recentes, nas últimas amigas que fizera.

Lembrou das festas, das bobagens que dividiam, dos infinitos copos d'água, das risadas alheias, das vergonhas eternas, da falta de senso delas mesmas, dos pequenos delitos divididos na cumplicidade de uma poltrona ou numa mesa de bar. Se sentiu muito feliz com isso tudo. Sabia que nunca poderia contar as particularidades da vida dela e tudo o que nela havia para essas pessoas que a faziam rir tanto, mas mesmo assim estava não só contente, mas grata por poder fazer aquele momento.

Aliás, aquele momento a fez lembrar-se também que não só o mundo era injusto, mas também que suas amigas, aquelas das quais estava há pouco se lembrando mereciam também um título de incompetência. Mas as amava demais para pensar nisso. O mundo muda, e porque não mudar com ele?

Prestou atenção na tinta que lhe escorria pelas pernas e coloria com uma cor totalmente indefinida o chão branquinho da sala de banho. Era um amarelo azulado de toda a indumentária de ontem que a levou a pensar num outro tipo de incompetência. Dessa vez uma incompetência dupla, ou melhor, de uma dupla de pais.

Enquanto se deliciavam com os amigos num churrasco o pequenininho deles saiu correndo atrás da bola de futebol que olhava para ele e parecia chamá-lo, simplesmente encantá-lo. Com a permissão da mãe lá se foi o pequeno atleta se deliciando no campinho com outros coleguinhas.

Em consequência do calor, porém, olhou para trás e viu um oásis no meio do condomínio e saiu correndo para saciar seu calor, sede e vontade de se refrescar. Pulou na piscina como se fosse um portal do tempo e se deixou levar completamente pela água azulzinha que bailava na valsa das pessoas. Muito tempo, preocupação e procura depois os pais o encontraram se refrescando no pequeno quadrado cavado no chão cheio d'água.

Ouvindo seu nome gritado pelo pai o pequeno de um pulo só saiu assustado do trono líquido e começou a compreender que devia ter reinado só naquele reino. Os pais não entendiam que por falta de competência e de vigilância deles poderiam ter perdido seu peixinho nas correntezas das águas azuis.

Resgataram o expedicionista mirim e, mais uma vez, o deixaram sob a vigilância dos móveis, mas desta vez o pequeno não se moveu novamente. Estava sem roupas e envergonhado demais para esboçar qualquer movimento.

Essas e outras histórias que ela poderia contar até o fim dos dias faziam com que se perdesse parcialmente a confiabilidade tanto na raça humana quanto nos valores ensinados a nós pelos nossos avós e pais. Mas como muito bem definiu a narradora do Contando e Recontando:

Esperança

Esperança
É uma senhora tranquila de olhos grandes feitos de horizonte e mãos pequenas cheias de "enquanto". Vive sentada na varanda, embalando com a brisa, suas inteções de futuro.


E porque não ajudá-la a se balançar e a manter seus olhos bem abertos...